Esta aqui, uma de minhas últimas criações, foi resultado de um desafio. Eu tinha acabado de assistir ao filme "Ensina-me a Crescer", onde o professor pedia uma redação na qual se descrevia com palavras de bom gosto o ato de ir ao banheiro. Minha irmã, na época cursando a primeira série do segundo grau, achou isso impossível, mas eu disse que, não só era viável como interessante. Me propus a fazer e provar para ela que poderia ficar legal.
Já fazia um bom tempo que eu não escrevia nada, por isso não foi tão fácil, mas a inspiração veio rápido por que o tema era realmente muito "diferente" e o desafio de usar poesia para expressar uma situação muitas vezes constrangedora me cativou.
Minha irmã comentou o fato com a professora, e esta pediu para dar uma olhada no texto. Gostou muito e usou como exemplo para a turma, mostrando que os caminhos poéticos não precisam estar presos a uma forma ou conteúdo pré-estabelecidos pela sociedade. O importante mesmo é escrever.
Este texto foi escrito no dia 9 de Setembro de 1994.


Um dia, todo dia, todo mundo

Domingo, final de tarde. Como as chuvas de verão, que vêm sem avisar, e se vão mais rápido do que chegaram, noto um espasmo. Aperto no intestino, sensação desagradável. Louca vontade de levantar e correr, terminar esse sofrimento interno. Queria sumir daquela reunião familiar, todos os parentes na sala, e fugir ensandecido, para cumprir o ritual que se fazia necessário. Delicadamente me levantei e disse: "Com licença, vou ao toilette".
Passos largos marcaram meu trajeto. Não era um passeio vespertino, para apreciar a casa, mas uma corrida, maratona que não pode ter perdedores, cujo objetivo final parecia nunca se aproximar. A porta, distante, era o alvo a ser atingido. Cheguei. Quase não dá tempo.
Tranquei-me naquele recinto estreito. Inicia-se uma sequência de atos tão conhecida minha que nem estranho mais a magia do momento. Olho para o vaso sanitário, ele parece olhar para mim. Sorrio. Tiro minha roupa, rápido o bastante para satisfazer minha pressa, lento o bastante para que seja feito com precisão. Faço o mesmo com ele, ou, pelo menos, algo equivalente. Não há vergonha, já somos íntimos de muito. Homem e sanitário, desnudos, relação tão estranha e tão comum, amigos de longa data. O contato que se segue é o prenúncio de um curto momento de êxtase. Nádegas quentes sobre o assento frio, choque ao primeiro momento. Enfim, posso relaxar o esfíncter. É hora de minha produção diária.
Alguns segundos, minutos, horas. Minhas entranhas se contorcem naquele trabalho quase macabro que é separar de mim aquilo que não mais me serve, restos de meu consumo vital. Deveria ser fácil, não é. Estranho que aquilo que tanto queria sair, sem se importar com local ou ocasião, agora se recusa a fazê-lo. É necessário todo um trabalho muscular, mas ao final vale a pena. A sensação de corpo limpo, vazio, surge lentamente, até que posso enfim respirar aliviado. Terminou ?
Não, ainda não. Falta aquela que me parece a pior parte. A assepsia final. Um rolo de celulose desinfetada, colorida artificialmente, pendura-se ao lado do trono no qual fui Rei. Tão macio, tão límpido. Dá pena sujar, mas é necessário. Destaco um pedaço generoso, dobro ao meio, seguro sobre a palma da mão direita. Olho para a esquerda, como que querendo disfarçar um sentimento de nojo por passar a mão, mesmo recoberta, naquela substância de cor amarronzada que se negou a sair junto com o monte principal. Passo uma vez, passo a segunda, já deve ter sujado todo o papel. Pego mais um pedaço e recomeço. Duas, três, quantas vezes forem necessárias até que nada mais reste.
Posso me levantar de novo. Visto minha roupa, lentamente. Cansado, quase suado, parece que saí de uma sessão de ginástica. Foi um dos maiores serviços do mês. Provavelmente era o churrasco do sábado, confraternização da turma do trabalho, se fazendo manifeste ao final do meu ciclo alimentar.
Já recomposto como manda a etiqueta social, volto ao convívio de minha família. Retomo meu lugar original e prossigo na refeição que agora se principia. É o reinício de tudo. Todo dia, ontem, hoje e sempre. É a lei da natureza humana, da qual ninguém pode escapar nesta vida. Pobre ou rico, sábio ou ignorante, oficial ou subalterno, preto ou branco, homem ou mulher. É a vida, em uma de suas passagens naturais. Nada a ser estranhado, nada a ser escondido.


Copyright © 1994, by João Carlos Mendes Luís